Recentemente, formou-se uma nova coalizão de organizações de saúde e especialistas na União Europeia para defender a redução de doenças, lesões e mortes relacionadas ao álcool. Anunciada no Congresso da European Association for the Study of the Liver (EASL) de 2025, em maio na Holanda, a European Health Alliance on Alcohol tem como objetivo reduzir o impacto do álcool na saúde, aumentar a conscientização pública e defender a implementação de políticas eficazes para salvar vidas.
A Região Europeia da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem o consumo mais intenso de álcool de todas as regiões do mundo, o que causa uma redução significativa na expectativa de vida, especialmente entre homens. Nessa região, aproximadamente 800 mil vidas são perdidas a cada ano pelo uso de álcool. O consumo de bebidas alcoólicas é também um fator de risco importante para incapacidade, uma causa importante de mais de 200 doenças crônicas e um fator associado a muitas enfermidades e transtornos mentais.
Apesar disso, as narrativas culturais e sociais sobre o consumo de álcool estão em desacordo com as evidências clínicas, alimentando os danos relacionados ao álcool.
Uma mesa-redonda organizada no congresso reuniu médicos, formuladores de políticas públicas e um paciente com doença hepática relacionada ao álcool. O objetivo da reunião era desafiar algumas das explicações sociais comuns sobre o uso de álcool e revelar as formas profundamente enraizadas com que elas moldam a saúde e a sociedade.
“Não se trata de julgamento”, disse David Barrett, gerente de comunicações internas e multimídia da OMS, na Dinamarca, que presidiu o evento. “Trata-se de esclarecer as coisas, [de derrubar] todos os mitos [em torno do uso de álcool].”
A discussão contou com um painel intersetorial com a participação de Dra. Margarida Santos, clínica geral, de Portugal; Hazel Martin, paciente com doença hepática relacionada ao álcool e jornalista da BBC, da Escócia; Dr. Aleksander Krag, Ph.D., professor e chefe do departamento de gastroenterologia e hepatologia do Odense University Hospital, na Dinamarca, e secretário geral da European Association for the Study of the Liver; Riina Sikkut, membro do Parlamento Estoniano; e Dra. Carina Ferreira-Borges, Ph.D., consultora regional de álcool, drogas ilícitas, e saúde prisional no escritório regional da OMS para a Europa.
Ao compartilhar sua experiência, Hazel refletiu sobre seu papel duplo como jornalista e tema do episódio Binge Drinking and Me, da BBC Panorama.
“Nunca é o objetivo de um jornalista ser o assunto”, disse Hazel, falando francamente sobre seu diagnóstico de doença hepática relacionada ao álcool aos 31 anos de idade. Ela refletiu sobre como o álcool está profundamente incorporado na vida cotidiana: “Eu não sentia que estava bebendo de forma diferente das pessoas ao meu redor. Ainda assim, recebi um diagnóstico de fibrose e lesão hepática relacionada ao álcool. Foi um choque enorme”.
Hazel descreveu a dissonância entre o que é percebido como hábito de consumo alcoólico normal e a realidade clínica. Seu diagnóstico a surpreendeu, mas também fez com que se perguntasse sobre o aceitamento social em relação ao hábito de beber.
“Por que tanta gente não percebe que está em risco? Existe uma mensagem de saúde pública dizendo ‘Espalhe seu consumo de álcool ao longo da semana. Conheça seus limites’, mas ninguém sabe realmente o que isso significa”, disse ela. “O consumo compulsivo [de bebidas alcoólicas] é definido como ingestão de seis doses de uma única vez [para uma mulher]. Isso significa cerca de duas taças grandes de vinho. Ainda assim, poucas pessoas reconhecem quando estão fazendo isso”, explicou ela, acrescentando que muitas pessoas com quem conversou depois de fazer o programa ficaram chocadas.
A Dra. Margarida, que trabalha no sistema português de assistência primária, disse que percepções errôneas comuns sobre o uso de álcool estão entre as maiores barreiras para reduzir os danos e que as pessoas frequentemente têm um estereótipo limitado de quem é prejudicado pelo uso de álcool. “As pessoas acreditam que o transtorno de abuso de álcool afeta apenas alguém de baixo nível socioeconômico que bebe diariamente e fica visivelmente bêbado. Mas, muitas vezes, [o problema] é mais sutil — mas igualmente prejudicial.”
Ela admite que pode ser difícil discutir o consumo de álcool com os pacientes. “Eles dizem [que bebem] ‘uma taça durante as refeições’ ou ‘uma cerveja aqui e ali’, sem reconhecer que isso talvez já cruze os limiares de risco.”
Mais preocupante, ela enfatizou, são as lacunas de comunicação. “Nós [profissionais de saúde] falamos em termos de unidades [de consumo] e lesão hepática, mas o que o público quer saber é: ‘isso aumenta minha probabilidade de ter câncer de mama ?’ ou ‘como isso me afeta?’. Eles não percebem que [beber] dificulta seu trabalho ou que afeta a fertilidade.”
Ela destacou que o estigma também continua sendo um problema importante. “Há uma ‘vergonha da sobriedade’ em casamentos e festas, o que pressiona as pessoas a beberem. Elas perguntam: ‘Por que você não está bebendo? Você está grávida?’. Esse é um problema cultural que precisa mudar.”
Promoção da indústria e desconexão da sociedade
A Dra. Margarida também alertou sobre a influência das empresas na elaboração de políticas públicas, salientando que, em Portugal, grandes indústrias de bebidas alcoólicas entraram em contato com o ministério da saúde. “Precisamos parar de normalizar isso”, disse ela.
Podcasts e influenciadores, amplamente conhecidos pelos adolescentes, também são patrocinados pela indústria do álcool, mas nenhuma ação é tomada contra isso. A Dra. Margarida tem seu próprio podcast. “Acho isso perturbador, porque seria impensável que uma pessoa ou um podcast fossem patrocinados por uma empresa de tabaco. Ninguém faz nada a respeito disso. Acho que é [um problema] cultural.”
A especialista em saúde pública da OMS, Dra. Carina, disse que as escolhas das pessoas não são feitas no vazio, mas moldadas por ambientes repletos de marketing e envoltos por uma cultura que se infiltra ao ponto de levar princípios sociais a se perderem. “É absurdo que as indústrias, visando o lucro, vão às escolas para ensinar as crianças a beber, e há o entendimento de que isso não é um problema. Como todos esses sistemas incentivam danos enquanto alegam promover o que chamam de ‘escolha’?”
A Dra. Margarida concordou e pediu uma mudança na comunicação de saúde pública, com mais investimentos em estratégias de comunicação correspondentes à escala e à abrangência das campanhas da indústria de álcool.
Derrubando os mitos do álcool: o vinho tinto (não) é saudável!
Ao falar de sistemas que propagam desinformação e alimentam danos relacionados ao álcool — em oposição à culpa individual —, o Dr. Aleksander refletiu sobre o mito persistente de que o consumo moderado de álcool, especialmente o vinho tinto, oferece benefícios cardiovasculares. “Acho que tem sido um mito muito difundido e que a indústria alcoólica adora reforçar. Se olharmos para centenas de doenças em grandes conjuntos de dados, pode haver alguns desvios que corroboram isso, mas a realidade é que, quanto mais se bebe, maior é o risco. Precisamos ser cuidadosos, porque [a indústria] está bagunçando essa informação”, disse, enfatizando a clara relação dose-resposta entre o uso de álcool e a mortalidade.
Os especialistas pediram por uma comunicação de saúde mais clara e acessível, juntamente com políticas robustas que priorizem o bem-estar público em vez do lucro.
A recém-anunciada European Health Alliance on Alcohol irá destacar os impactos frequentemente negligenciados do álcool em doenças cardíacas, suicídio, sono e saúde mental. O objetivo é fortalecer a influência dos profissionais de saúde nas políticas de consumo de álcool em níveis local e nacional e em toda a Europa.
Fonte: Becky McCall, traduzido pela Medscape
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